KnoWhy #169 | Outubro 18, 2024

Por que Morôni se referiu à impureza do vaso ao condenar o governo central?

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Scripture Central

"Ora, gostaria de lembrar-vos que Deus disse que se deve limpar primeiro o vaso interior e depois se limpará também o vaso exterior."

O conhecimento

Numa carta em tom incisivo ao Juiz Supremo Paorã, o capitão Moroni repreendeu os funcionários do governo central que eram responsáveis pelas dificuldades de seus soldados no campo de batalha. No entanto, embutido entre uma série de perguntas retóricas, Morôni recorreu a uma lei divinamente estabelecida que não é encontrada em outro lugar no Livro de Mórmon: "Ora, gostaria de lembrar-vos que Deus disse que se deve limpar primeiro o vaso interior e depois se limpará também o vaso exterior" (Alma 60:23). É provável que o argumento de Morôni derive de sua leitura das instruções legais dadas ao antigo Israel. Panelas de barro e vários recipientes eram abundantes na civilização israelita e, para as pessoas poderem comer alimentos ritualmente limpos, esses recipientes precisavam estar em estado de pureza ritual. Em Levítico, o Senhor estabeleceu leis de impureza em relação a animais mortos (especificamente rastejantes, como roedores e lagartos) que poderiam contaminar vários tipos de vasos ao cair neles:

E tudo aquilo sobre o que cair alguma coisa deles, estando eles mortos, será imundo; seja objeto de madeira, ou roupa, ou pele, ou saco, qualquer objeto, com que se faz alguma obra, será posto na água, e será imundo até a tarde; depois será limpo. E todo vaso de barro, em que cair alguma coisa deles, tudo o que houver nele será imundo, e o vaso quebrareis. (Levítico 11:32-33)

Outra provisão da lei diz: "[Q]uando morrer algum homem em alguma tenda: todo aquele que entrar naquela tenda, e todo aquele que estiver naquela tenda, será imundo sete dias. Também todo vaso aberto, sobre o qual não houver pano atado, será imundo" (Números 19:14-15). Esses regulamentos levantaram uma série de questões legais: essa regra de impureza se aplica apenas a uma peça de cerâmica que tinha um interior e um exterior, como um jarro, mas não, a um prato? Aparentemente, sim, caso contrário, como poderia o cadáver do animal "cair" dentro dele (Levítico 11:33)? Bastava estar no mesmo espaço que o animal morto ou a impureza era transferida para um recipiente aberto apenas por contato real? Aparentemente, nenhum contato com o recipiente aberto era requerido (Números 19:15). O vaso ficou impuro se o animal morto entrou em contato apenas com o interior? Aparentemente, sim, porque a contaminação de um cadáver para o lado de fora de um recipiente coberto não o tornava impuro. Se apenas a parte externa do recipiente estivesse contaminada, ele poderia ser purificado simplesmente imergindo-o em água até o final do dia? Sim (Levítico 11:32). Se o interior de um vaso aberto estivesse contaminado, ele teria que ser quebrado? Sim (Levítico 11:33). Claramente, essas regulamentações eram bastante específicas, e documentos do Egito mostram que a impureza de vasos era uma preocupação real na antiguidade.1 Por trás dessas regras está implícita a suposição de que o interior de um vaso era mais suscetível à impureza do que o exterior. Esta distinção explicaria logicamente a ideia de que a limpeza da impureza maior, dentro de um recipiente, purificaria automaticamente a impureza menor no exterior e, portanto, por várias razões, faria mais sentido limpar o interior de um recipiente antes do exterior. É compreensível que essas legalidades pudessem ser facilmente impregnadas de importância simbólica. A partir dos ensinamentos de Jesus no Novo Testamento, é evidente que ele estava ciente das regras relacionadas à pureza dos recipientes e de seu significado metafórico. Em uma instância, Cristo afirmou a condenação de Isaías: "Este povo honra-me com os lábios [o exterior], mas o seu coração [o interior mais suscetível] está longe de mim" (Marcos 7:6-8).2 Jesus explicou então: "Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele, isso é que contamina o homem" (v. 15). Lutando com esses temas antigos, as escolas judaicas de Hillel e Shammai, nos dias de Jesus discutiram sobre a ordem de limpar um recipiente, se alguém deveria purificar seu interior ou seu exterior primeiro.3 Jesus fez uso desse debate para obter uma lição moral, quando condenou os fariseus por serem como pessoas que purificam o exterior de um recipiente, "mas o interior está cheio de rapina e iniquidade. […] limpa primeiro o interior do copo e do prato, para que também o exterior fique limpo" (Mateus 23:25-26). Sentimentos semelhantes relacionados à impureza dos vasos internos podem ser encontrados em outros textos cristãos ou gnósticos antigos.4

O porquê

Quando o capitão Morôni exigiu de Paorã que "se deve limpar primeiro o vaso interior e depois se limpará também o vaso exterior" (Alma 60:23), ele invocou disposições legais da Lei de Moisés que teriam sido conhecidas por Paorã. Morôni baseou-se na dicotomia essencial "interior-exterior", quando falou daqueles que estão no "coração de nosso país, cercados de segurança" (v. 19), e daqueles de fora, "nas fronteiras da terra" (v. 22). Ele supôs que o interior podia contaminar-se seriamente com muita facilidade, simplesmente pela ociosidade e abandono do dever (vv. 18, 22). Ele presumiu que, assim que o recipiente interno fosse limpo, o recipiente externo "se limpará também" (v. 23). Portanto, faz sentido começar limpando a situação dentro da capital. Embora Jesus discordasse daqueles fariseus que começaram limpando o exterior de um vaso, Morôni não sabia de ninguém que sugerisse que os soldados nas guerras precisavam ser purificados primeiro. Ainda assim, a concordância geral entre os argumentos de Jesus e Morôni, sugere fortemente que eles se baseavam nessas leis de Levítico e Números. Morôni atribuiu, inequivocamente, essas regras purificadoras de vasos a Deus, para aumentar o impacto de sua acusação metafórica. Seja qual for a explicação, a interação destes textos demonstra o valor de estudar a Bíblia e o Livro de Mórmon juntos.5 Um componente unificador nessas declarações e preocupações sobre impurezas pode ser encontrado na teologia do templo antigo. Os vasos usados nos antigos templos israelitas deveriam ser mantidos puros,6 o que parece estar diretamente relacionado à ordem de Isaías de "purificai-vos, os que levais os vasos do Senhor" (Isaías 52:11; 3 Néfi 20:41). Ecoando esse sentimento, o Salmo 24:3–4 enfatizou a necessidade de limpeza externa e pureza interna: "Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo? Aquele que é limpo de mãos e puro de coração" (ver também 2 Néfi 25:16 e Alma 5:19).7 As partes mais internas do templo em Jerusalém eram consideradas mais sagradas do que as partes externas, sendo o Santo dos Santos o mais sagrado e cosmicamente central de todos.8 O mesmo princípio se aplicava em Zaraemla, a principal cidade do templo dos nefitas. A exigência de Morôni de que Paorã limpasse o centro da cidade, também poderia ter implicado que o templo de Zaraenla havia sido profanado pelo fracasso de Paorã, em apoiar os soldados na guerra, alguns dos quais haviam morrido, juntamente com mulheres e crianças (Alma 60:17). Reconhecendo que "o Senhor disse que não habita em templos impuros, mas no coração dos justos" (Alma 34:36), Morôni também teria esperado que o coração de Paorã fosse mudado, que o Espírito de Deus santificasse a parte mais profunda e íntima de sua alma e impeli-lo a agir em favor da situação desesperadora de Morôni.9 E assim como um indivíduo deve purificar seu coração para entrar na presença do Senhor,10 da mesma forma uma nação deve ser pura de coração — e no caso do povo de Morôni, pura em seu governo central — se Deus deve abençoá-los com paz e prosperidade.11

Leitura Complementar

John W. Welch, The Sermon at the Temple and the Sermon on the Mount: A Latter-Day Saint Approach (Provo UT: Deseret Book e FARMS, 1990), pp. 42-46, 77-78. Donald W. Parry, "Demarcation between Sacred Space and Profane Space: the Temple of Herod Model", em Temples of the Ancient World: Ritual and Symbolism, ed. Donald W. Parry (Salt Lake City e Provo, UT: Deseret Book e FARMS, 1994), pp. 413-439.

1. Para a impureza da panela no meio da comunidade judaica em Elefantina quatro séculos a.C., ver Bezazel Porten e Ada Yardeni, "Ostracon Clermont-Ganneau 125: A Case of Ritual Purity", Journal of the American Oriental Society 113 (1993): pp. 451-456. 2. Ver também Mateus 15:1-9; Mateus 23:26-27. Esses versículos parecem sugerir que, embora os fariseus fossem rigorosos em seguir os estatutos tradicionais sobre a impureza dos vasos, eles não estavam seguindo os mandamentos mais importantes de Deus. 3. Ver Jacob Neusner, A History of the Mishnaic Law of Purities, Part 3: Kelim (Leiden: Brill, 1974): pp. 374-81; Mishnah Kelim 2:1; TB Hullim 24b; Sipra, Shemini 7:6; Jacob Milgrom, Leviticus 1-16 (New York: Doubleday, 1991), p. 675. 4. Ver Gospel of Thomas 89:1-2; Gospel Oxyrhynchus fragment 840 2:8. Ver também, Robert W. Funk, Roy W. Hoover, e the Jesus Seminar, eds., The Five Gospels: The Search for the Authentic Words of Jesus (New York, NY: Polebridge and Macmillan, 1993), p. 243. 5. Ver o artigo da Central do Livro de Mórmon, "Por que é necessário haver o testemunho de duas nações?(2 Néfi 29:8)", KnoWhy 56 (10 de março de 2017). 6. Ver Donald W. Parry, "Service and Temple in King Benjamin’s Speech", Journal of Book of Mormon Studies 16, no. 2 (2007): p. 45; Donald W. Parry, "Demarcation Between Sacred Space and Profane Space: the Temple of Herod Model", em Temples of the Ancient World: Ritual and Symbolism, ed. Donald W. Parry (Salt Lake City e Provo, UT: Deseret Book e FARMS, 1994), p. 428; Hugh Nibley, Mormonism and Early Christianity, ed. Todd M. Compton e Stephen D. Ricks (Salt Lake City e Provo UT, Deseret Book and FARMS, 1987), p. 394. 7. Curiosamente, Alma 5:19 inverte a ordem das mãos diante dos corações: "Pergunto-vos: Podereis naquele dia olhar para Deus com um coração puro e mãos limpas? Pergunto-vos: Podereis levantar os olhos, tendo a imagem de Deus gravada em vosso semblante?" (ênfase adicionada). 8. Parry, "Demarcation of Space", p. 414. 9. Ver David A. Bednar, "Mãos Limpas e Coração Puro", A Liahona, outubro de 2007, p. 80, disponível online em: lds.org. 10. John W. Welch, The Sermon at the Temple and the Sermon on the Mount: A Latter-Day Saint Approach (Provo UT: FARMS, 2010), p. 45. 11. Ver Salmo 24:4-5; D&C 97:21. Ver também Ezra Taft Benson, "Cleansing the Inner Vessel", A Liahona, julho de 1986, disponível online em: lds.org.